Virei a
chave na ignição: a segunda atitude subversiva da noite. A primeira foi decidir
que escreveria. Só que a merda da gasolina acabou na metade do caminho e eu
continuei a pé, fingindo que sabia pra onde ia. Nessa hora eu ri do fato de que
eu sempre acabo retornando para mim mesma: olá, solidão, bem-vinda de volta.
Os postes
acesos não humanizaram a madrugada. Era eu, na cidade morta. Mas não me senti
perdida, não mais do que eu já estava. Então me sentei no meio-fio. Tirei o
bloco de notas da minha jaqueta e agora estou aqui.
Eu não sei
bem o que eu estou fazendo no meio-fio, nessas circunstâncias, nessa cidade. A
vida foi uma série de alternativas de múltipla escolha, eu fui escolhendo,
tentei dar um sentido que está se perdendo e encontrei algo que eu não sabia,
mas estava procurando, em você.
Eu achei que
eu estava bem entre tantas pessoas que poderiam ser você e não eram. Só me dei
conta do quanto eu estava mal quando o conheci. Eu teria sido só mais uma
pessoa para você, também, não fosse o meu olhar perdido que teimava em não estar
no mesmo tempo-espaço do meu corpo. Foram essas as suas palavras. Foi por isso
que, entre tantas pessoas que poderiam ser eu e não eram, você me notou.
Eu cheguei a
pensar que seríamos a cura um do outro. Piada. A vida não funciona assim. Não
existe esse negócio de cura. O que acontece não sai de dentro de nós por causa
de alguns momentos bons. É como a goteira da sala, a porta que range, o
interruptor que funciona apenas quando quer: com o tempo se aprende a ignorar, mas
isso não significa que não está lá. Nem é como se eu tivesse escolha, de fato.
Invariavelmente, é preciso aprender a conviver com o que se é.
Está frio
aqui. E eu estou sozinha. Não sei porque eu pensei que dessa vez seria
diferente. Normalmente, eu sei que não vai ser. Eu nem acredito no amor nesses
moldes que o capitalismo vende. Você me disse que eu não sei amar. Eu acho que
o amor se perdeu em algum ponto da história da humanidade e o que sobrou foi
idealização, empatia, carinho, tesão. Tudo muito superestimado. Discordamos
nesse ponto.
Olho para a
torre do relógio, são três horas da manhã. Eu sou pesada. Ninguém sabe o esforço que eu faço para não pesar nos outros. Sempre fracasso. Eu os
afasto com regularidade. Os mais próximos dizem: deixa fluir, pense menos, as
coisas acontecem naturalmente, relaxa, você não devia elucubrar tanto. Como se
eu não enxergasse por conta própria que pensar a vida na perspectiva que eu
penso me consumisse. Como se eu nunca tivesse tentado mudar. Como se fosse
simples deixar de ser quem você é.
Dar
significado, criar hipóteses, isso nunca foi uma opção. Acontecia. Como eu
estou fazendo agora. Eu não consigo ler uma poesia ou ouvir uma música sem
pensar nas merdas que podem ter acontecido para aquilo nascer. Eu não consigo
não me deixar tocar quando algo do lado de fora encontra do lado de dentro. Minhas
cicatrizes abrem. Eu estou bem. Até que o barulho da goteira gotejando dentro
de mim volta a ser ouvido. O ranger da porta volta a incomodar e o escuro
interior, porque o interruptor não acende, dá medo. É um ciclo. De tempos em
tempos eu sempre acabo voltando para mim mesma.