quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O guarda-roupas


         Quando eu era pequena e corria a imaginação no esculpido desse guarda-roupas, vó... O vô, sentado na cama dele, porque vocês tinham camas separadas, sintonizava a rádio numa música que meu gosto de criança apreciasse, enquanto eu me balançava entre as camas ouvindo o vô me advertir sobre uma possível queda. Era nessa hora que eu me pegava tentando decifrar o guarda-roupas. Na primavera da minha infância, eram cachorros. Eu tinha certeza sobre serem cachorros. Só que então fui crescendo. O vô me mostrava a foto dele jovem num binoculinho azul. Era preciso olhar contra a luz pra poder ver a foto em tons de cinza. Ele, então, me contava sempre a mesma história cuidando da complexidade dos detalhes conforme minha idade ia avançando. Era quando tanto detalhe fazia perder a graça. Ele era alfaiate, lembro-me de riscas de calças impecáveis na história, costura impecável, impecável era a sua palavra. Desculpa não costurar essa história em mim, vô. É que antes mesmo de você terminar, eu já estava perdida com os pensamentos no guarda-roupas. O esculpido logo deixou de ser cachorro pra ser tribo indígena. Resolvia-se o mistério. Eu até tinha uma teoria de que Carmem Miranda inspirou o figurino nessa tribo. As dúvidas agora recorriam sobre o lugar exato do nariz, olhos e boca dos índios. Gastei anos para defini-los. Só que hoje, vó, hoje o mistério voltou. Não consigo mais enxergar cachorro nem índio, só um guarda-roupas. Esse móvel não combina mais com o quarto, que agora só tem uma cama, que não tem mais um rádio antigo que demorava pra sintonizar. Mas que tem um ar condicionado de controle remoto. Esse quarto que não tem mais o cheiro do vô. Eu não me importo mais, vozinha. Não faz mal que o mistério ainda exista. Tudo o que esse tom de marrom faz em mim, hoje, é servir de portal para a existência na memória do vô. Quando pequena, eu me escondia no esconde-esconde nesse guarda-roupas que agora esconde as lembranças do vô. Eu achava o máximo, vó, um guarda-roupas de chave. São as chaves da saudade que eu tenho do vô.